quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Velhos amigos


Eles sempre fizeram parte da minha infância. Era entrar pela porta da sala, que eles eram os primeiros a serem vistos, acomodados na estante, na sua humilde condição de simples objetos de decoração. Até então, os livros velhos da minha avó eram vistos assim, como uma coisa que sempre esteve ali. Sabia para o que eles serviam, claro, e sabia que eles já tinham sido destrinchados por quase todas as pessoas da minha família. Livros cheios de história.

Um dia, pela manhã, parei em frente à estante e decidi que era hora de começar a espirrar com a poeira acumulada naquelas folhas amareladas. “Deus Protege os que Amam”, de Johannes Mario Simmel, era o título da relíquia que peguei por curiosidade. A capa era bonita! Não sei se é a mesma curiosidade que me move até hoje na busca por histórias fantásticas, mas sei que foi ela quem me fez espirrar com o mofo e me fez nunca mais sair da frente daquela estante. Livros cheios de encanto.

O livro, que muitos podem jurar ser sobre alguma religião, ou pior, de auto-ajuda, é um romance policial, com um quê de investigação, aventura e intrigas. A minha paixão pela trama foi tanta, que em dois dias, depois de parar de comer, dormir e tomar banho só para não perder o precioso tempo de leitura (drama?), já tinha viajado por todas as suas senhoras páginas. Pra mim, aquele momento, de ter lido um livro velho, provavelmente esquecido ali, era o meu passaporte para algum lugar distante, meio clandestino, quase uma Terra do Nunca. Me lembro de ter ficado horrorizada em um dos trechos eróticos do livro e de ter ficado decepcionada quando perguntava para alguma de minhas amigas se elas já conheciam a história.

Após essa etapa, fui ficando mais resistente aos fungos, poeira, mofo, traças... Sempre ficava em frente à estante e perguntava: “vó, qual livro eu leio?”. Quando ela não contava o final sem querer, acatava a sugestão dela. E lá ia eu de novo! Os espirros foram ficando na lembrança, assim como cada personagem, e a minha vontade de descansar os meus olhos nas páginas desbotadas, velhas de guerra, virou uma obsessão.

Os livros velhos da minha avó foram sequestrados por mim, e se tornaram os meus livros velhos. Os mesmo que serão ignorados por sua condição deplorável por algum futuro filho, sobrinho ou neto. Aos poucos fui levando um a um para a minha estante nova de guardar bagunças. Hoje eles são maioria, confesso. Alguns são heranças de família, outros vieram de sebos humildes do centro da cidade. Mas todos, sem exceção, são melhores do que qualquer página branquinha de um livro novo. Livros com história, mas sem encanto.




Em todos esses anos nunca tinha percebido a importância que uma obra antiga poderia ter. Sempre guardei esses livros como se fossem herdeiros de memória. Recentemente descobri que eles são mais que isso, eles carregam a memória das pessoas que leram primeiro que você. Imagino a minha mãe, por exemplo, lendo um desses livros, o que ela estava vivendo na época, a delicadeza que virava as suas páginas, o suco de laranja derrubado sem querer em uma página. O livro velho carrega em sua magnitude um ar de “sobrevivi ao tempo, então me respeite”.

Os meus livros velhos me fizeram entender que eles não são objetos de decoração da sala da minha avó. Hoje eles são objetos de coração. Ler histórias nessas criaturas mágicas é como se eu assoprasse o pó de cima de um baú velho, abrisse a sua tampa danificada e resgatasse do seu interior tesouros valiosíssimos. Se aventurar nessas folhas borradas pelo tempo, pode ser uma boa oportunidade de espirrar bastante, mas pode ser a chance que você esperava para ter em mãos a sabedoria que só um livro velho tem.


Asilo dos livros velhos, misturados com alguns novos. Junto com eles, a revista Jornal das Moças, de 1958.


5 comentários:

Talita Rustichelli disse...

Ai, que linda, minha amiga Manuzita. Lindo texto, cheio de leveza e alma. Meninos, não fiquem com ciúmes. Mas só vou comentar no texto da Manu mesmo...hahahaha... Bjos!

Diego Assunção disse...

Um toque de mulher no blog. Daqui uns dias haverá um tom rosa nas nossas paredes imundas do banheiro, talvez um purificador de ar, tampa do vaso sanitário abaixada, etc.

Sobre o texto? "Nada como sentir o cheiro de um livro mofado pela manhã. É o cheiro da vitória", já dizia um maluco.

Welcome to the club, madam.

Eduardo Martinez disse...

Muito cuidado com as mulheres, Tião.Quando a gente menos esperar, isso aqui vai estar parecendo o site oficial da Hello Kity.

Diuan Feltrin disse...

Belíssimo texto Manu! Quase que é possível manusear as páginas do velho livro relatado!

Talita Rustichelli disse...

Hello Kitty nada, Dudu. Tá é faltando umas coisas escritas com batom aí nessa parede de banheiro. Tipo: "Jucicleide é biscate" ou "Carlão gostoso quero dar pra vc". Poesia do cotidiano. hahaha