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sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Círculo vicioso


E de repente você se vê cercado de idiotas. Os idiotas te adoram, adoram conversar com você, e como você é um ser compreensivo e raramente trata mal as pessoas, o dia em que o capeta belisca sua bunda e você resolve soltar o verbo, eles pensam apenas: coitado, deve estar num dia ruim. E não largam do seu pé. Nunca.

E você não agüenta mais aquele papinho insistente de hoje eu comi macarrão no almoço ou amanhã tenho que lavar a moto ou fui no salão ontem fazer a unha ou tô passando por dificuldade financeira ou preciso de um sapato novo ou dei tanto que tá doendo ou você viu só o Ronaldinho? Não! Não vi porra de Ronaldinho, você responderia. Ao contrário, a cortesia lhe consome, e você diz serenamente, mas com aquela vontade de socar um: é, vi sim, legal, né?

Então você começa a utilizar a técnica do “abstrair”. Entra em transe (ou finge que entra) quando os idiotas falam com você. Porque, de tanto os idiotas te procurarem, às vezes você fica em conflito, pensando se não seria idiota também. Então resolve dar um basta. Mas não resolve. O fio do desconfiômetro dos idiotas está sempre fora da tomada. E, como você é compreensivo, eles querem retribuir. Deixa ele, ele está ocupado agora... depois eu falo.

Aí você está num bar dançando com os amigos e vem aquela pessoa esquisita conversar com você. Toda vez. E você foge. Sempre. Porque a pessoa idiota te tira realmente do sério. Ódio salta pelos olhos. Mas ao invés de mandar pro inferno, o que você faz? Apenas se esconde. Finge que está bêbado e que vai vomitar no banheiro e foge, vaza dali. Só que de nada adianta. Porque no outro final de semana lá está você na mesma situação.

Depois de ter passado por aula de tai-chi-chuan e yoga, você resolve dar um salto. E xinga todo mundo, fica nervoso, manda pra puta que pariu, fala que vai dar murro, chute. E os idiotas ficam pasmos. Credo, como ele foi capaz disso? Esse não é o fulano que eu conheço. E você tem a chance da sua vida: mandar pra porra mesmo, dizer que não agüenta mais tanta idiotice. E o que você faz? Pede desculpa.

E o círculo vicioso da idiotice persiste. Você merece mesmo.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

definitivamente
não tenho saco
pra esse tipo de amor que ocorre por aí
essa aflição de querer
e não saber se é ou não querido
esses joguinhos de sedução de baile de sábado
essas cantadas de revistas de salão
essa coisa olhar 43

não tenho saco mesmo
não acho que sedução seja arte
porque, se fosse,
eu já teria tido mais de mil namorados

só tenho saco para o amor declarado
(quero um que caia aos meus pés
e deixe isso bem claro
porque da minha parte, idem)

é assim que tem que funcionar:
amor tem que ser espontâneo
antes mesmo de sê-lo

e quero ter a mira boa
para evitar intempéries
próprias de situações sem sucesso e sem tanto encanto
essas situações de espanto
de quando não se tem saco pra mistérios de amor

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Velhos amigos


Eles sempre fizeram parte da minha infância. Era entrar pela porta da sala, que eles eram os primeiros a serem vistos, acomodados na estante, na sua humilde condição de simples objetos de decoração. Até então, os livros velhos da minha avó eram vistos assim, como uma coisa que sempre esteve ali. Sabia para o que eles serviam, claro, e sabia que eles já tinham sido destrinchados por quase todas as pessoas da minha família. Livros cheios de história.

Um dia, pela manhã, parei em frente à estante e decidi que era hora de começar a espirrar com a poeira acumulada naquelas folhas amareladas. “Deus Protege os que Amam”, de Johannes Mario Simmel, era o título da relíquia que peguei por curiosidade. A capa era bonita! Não sei se é a mesma curiosidade que me move até hoje na busca por histórias fantásticas, mas sei que foi ela quem me fez espirrar com o mofo e me fez nunca mais sair da frente daquela estante. Livros cheios de encanto.

O livro, que muitos podem jurar ser sobre alguma religião, ou pior, de auto-ajuda, é um romance policial, com um quê de investigação, aventura e intrigas. A minha paixão pela trama foi tanta, que em dois dias, depois de parar de comer, dormir e tomar banho só para não perder o precioso tempo de leitura (drama?), já tinha viajado por todas as suas senhoras páginas. Pra mim, aquele momento, de ter lido um livro velho, provavelmente esquecido ali, era o meu passaporte para algum lugar distante, meio clandestino, quase uma Terra do Nunca. Me lembro de ter ficado horrorizada em um dos trechos eróticos do livro e de ter ficado decepcionada quando perguntava para alguma de minhas amigas se elas já conheciam a história.

Após essa etapa, fui ficando mais resistente aos fungos, poeira, mofo, traças... Sempre ficava em frente à estante e perguntava: “vó, qual livro eu leio?”. Quando ela não contava o final sem querer, acatava a sugestão dela. E lá ia eu de novo! Os espirros foram ficando na lembrança, assim como cada personagem, e a minha vontade de descansar os meus olhos nas páginas desbotadas, velhas de guerra, virou uma obsessão.

Os livros velhos da minha avó foram sequestrados por mim, e se tornaram os meus livros velhos. Os mesmo que serão ignorados por sua condição deplorável por algum futuro filho, sobrinho ou neto. Aos poucos fui levando um a um para a minha estante nova de guardar bagunças. Hoje eles são maioria, confesso. Alguns são heranças de família, outros vieram de sebos humildes do centro da cidade. Mas todos, sem exceção, são melhores do que qualquer página branquinha de um livro novo. Livros com história, mas sem encanto.




Em todos esses anos nunca tinha percebido a importância que uma obra antiga poderia ter. Sempre guardei esses livros como se fossem herdeiros de memória. Recentemente descobri que eles são mais que isso, eles carregam a memória das pessoas que leram primeiro que você. Imagino a minha mãe, por exemplo, lendo um desses livros, o que ela estava vivendo na época, a delicadeza que virava as suas páginas, o suco de laranja derrubado sem querer em uma página. O livro velho carrega em sua magnitude um ar de “sobrevivi ao tempo, então me respeite”.

Os meus livros velhos me fizeram entender que eles não são objetos de decoração da sala da minha avó. Hoje eles são objetos de coração. Ler histórias nessas criaturas mágicas é como se eu assoprasse o pó de cima de um baú velho, abrisse a sua tampa danificada e resgatasse do seu interior tesouros valiosíssimos. Se aventurar nessas folhas borradas pelo tempo, pode ser uma boa oportunidade de espirrar bastante, mas pode ser a chance que você esperava para ter em mãos a sabedoria que só um livro velho tem.


Asilo dos livros velhos, misturados com alguns novos. Junto com eles, a revista Jornal das Moças, de 1958.