Frank Sinatra era conhecido por “A Voz”. Porém, se me fosse delegado para escolher uma voz a representar a divindade, eu escolheria Johnny Cash.
Além de me emocionar com seus covers, ainda impressiona como ele era capaz não só de transformar como elevar as composições de outros artistas.
Escute I Hung My Head na versão original de Sting e depois a cantada por Cash. Com o líder do The Police, ouso dizer que a letra funciona, no máximo, como uma versão correta para uma música de protesto genérica.
A música narra os percalços de um homem após matar acidentalmente um cavaleiro. Pode-se dizer que este conteúdo já seria um material ideal para aquele que se tornou o arauto de todos os renegados após cantarolar “Eu matei um cara lá em Reno só para vê-lo morrer” no presídio de Folsom.
Mas a letra de Sting ganha profundidade não só pelo motivo de Cash ser o pai de todas as baladas criminais. Sob o timbre do “homem de preto”, os versos ressoam como se fossem um testemunho verídico.
É aquela rouquidão. A voz a sair com dificuldades das profundezas da alma. Entonação que ganha lentamente força no refrão que constata o próprio e inevitável enforcamento após implorar o perdão de Deus...
Não há deslumbre ou virtuosismo na maneira de Cash conduzir a canção. É com prudência que ele professa os versos. Não há falsa-modéstia nisso. Apenas uma decisão moral. “Como cantar de outro modo a própria desgraça?”, ele poderia perguntar.
Esse exemplo resume a capacidade que o marido de June Carter tinha de se apropriar de canções alheias ao ponto de torná-las dele. A isso se dá o nome de interpretação. E, de fato, Johnny Cash é reconhecido ao redor do globo como um dos mais importantes intérpretes da música popular norte-americana.
Aos montes de covers que foi erigida a monumental série American Recordings, gravações produzidas por Rick Rubin para o seu selo homônimo. Foi esse projeto o responsável por dar sobrevida a uma carreira tida como encerrada.
Com essa série, Rubin conseguiu a prova definitiva de que não haveria limites para o talento de Johnny Cash. Não importava o gênero ou a popularidade envolvida, o cantor conseguiria destruir rótulos e triunfar com sua personalidade em músicas já consagradas por outros nos ouvidos da multidão.
Com canções retiradas das paradas de sucessos - One, do U2 - ou escavadas do subterrâneo, como Hurt, do Nine Inch Nails, Cash soube incorporá-las em sua trajetória pessoal.
O melhor é que ele não temia refazer canções contidas no templo da música popular. Teve a audácia de remexer em terreno sagrado ao gravar In My Life, dos Beatles.
Com uma nobre alma também tratou todas as canções por igual. Só sua voz ousaria servir como ponte para que Leonard Cohen e Soundgarden caminhassem pela mesma vereda. Do primeiro, gravou Bird on the Wire. Da banda de Chris Cornell, Rusty Cage.
Sua voz era como um milagre. Não diria que agiu como um Midas a transformar tudo em ouro, já que muitas vezes regravou canções que eram por si só tão opulente e brilhante quanto o metal.
Mas ele conseguia o impossível. Tornar ainda melhores canções que já eram imortais. Eu amo as músicas de Tom Petty, mas como não se render à versão de Cash para I Won’t Back Down? E o que dizer dele cantando The Mercy Seat, de Nick Cave?
Dizer que Johnny Cash era um intérprete fenomenal é chover no molhado. A denominação se apequena diante do talento e poder contido em sua voz. É como se a palavra “intérprete” requeresse um novo sentido diante do seu dom. E eu não faço idéia qual seria o termo justo ou ideal.
Só acho que se Deus tem uma voz, ele a roubou de Johnny Cash. Da mesma forma como o cantor roubaste canções alheias para si.
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Ouça as duas versões de "I Hung My Head":
Sting:
Johnny Cash:
Um comentário:
muito bom esse post, realmente a voz do Cash é sensacional. muito bom
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